É impossível não notar: o espelho do provador mostra um reflexo bem mais magro do que a pessoa que está a sua frente, como se fosse um Photoshop da vida real. Algumas das estratégias usadas pelos lojistas para impulsionar as vendas de roupas e acessórios — como espelhos com truques, luzes indiretas e suaves, variação nas medidas de cada numeração de manequim — podem ferir a confiança na relação cliente/lojista.
A prática de algumas lojas é percebida pelos clientes, quando a dose de ilusão de óptica do espelho é exagerada. Além disso, mesmo sendo possível trocar os produtos na maioria das lojas, muitas pessoas acabam ficando com peças que não gostam ao experimentar em casa, fora do ambiente de espelhos emagrecedores e luzes difusas das lojas. A enfermeira Joelma Fernandes Oliveira, de 27 anos, diz que já percebeu o truque do espelho e considera uma estratégia incorreta:
— De certa forma isso não é certo. Você fica bonita ali, experimentando a roupa, mas depois, ao experimentar em frente ao espelho de casa, não vai conseguir o mesmo resultado. Nunca cheguei a desgostar de uma peça em casa, mas é diferente quando a visto fora da loja.
Já a auxiliar de serviços gerais Angela Maria da Silva, de 37 anos, fica com as peças, mesmo aquelas que desaprova ao vestir em casa.
— Já aconteceu comigo de vestir uma roupa em casa e não gostar. Mas eu acabo ficando com a roupa, depois, dou para alguém. Ter de voltar à loja é difícil — afirma Angela.
Especialistas falam em má-fé
A Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) classifica como um desrespeito, e até mesmo “falta de ética”, o uso de artifícios que “iludam” o consumidor. Para o presidente da entidade, Roque Pellizzaro Jr., optar por espelhos que distorçam a imagem de quem experimenta uma peça não é uma prática aconselhável e é rechaçada pela entidade:
— Recomendamos que o cliente saia satisfeito da loja, e essa sensação tem de ser perene. Ele tem de chegar em casa e continuar satisfeito.
A intenção do lojista ao escolher as estratégias de venda deve ser avaliada para saber se ele agiu com má-fé, para ludibriar o consumidor, afirma o advogado Vinicius Zwarg, especialista em direito do consumidor. Ele destaca que a boa-fé — o vendedor ser leal com o consumidor — é um princípio do Código de Defesa do Consumidor (CDC):
— Se não tem boa-fé, se a prática for deliberadamente para enganar o consumidor, isso fere o CDC. Sempre existe um limite. Alguns artifícios, por mais que a gente entenda como não sendo os mais desejados, talvez não sejam ilegais. Por outro lado, existem práticas a serem discutidas. Qualquer situação em que faltar boa-fé deve ser condenada, e o CDC trabalha muito com esse princípio, que a gente pode traduzir como ausência de lealdade, frustrando a confiança do cliente.
Já as estratégias de iluminação das lojas e provadores são defendidas por Pellizzaro, que afirma que essa ferramenta de venda não ilude o consumidor, apenas destaca as mercadorias e cria um ambiente compatível com a marca:
— Isso é muito válido, porque a ambientação faz parte do relacionamento entre loja e cliente.
Zwarg também destaca que não é um desrespeito ao CDC o lojista usar artifícios para embelezar seu produto. Mas afirma que é preciso informar o consumidor sobre a existência dessas estratégias, para garantir uma relação mais equilibrada entre lojista — que conhece muito bem os pontos positivos e negativos de seu produto — e cliente.
— Isso torna a roupa mais bonita? Sim, o ser humano associa assim. Há algo ilegal? Não. Não é ilícito você tornar aquilo mais bonito. Uma iluminação, uma música, uma publicidade, o Direito entende que é lícito. O que precisa é entender que isso existe. Formar a sociedade de consumo para enfrentar isso. Entender que é normal que a publicidade mostre que o produto é bonito — ressalta o especialista.
Zwarg destaca, porém, que a má-fé não se presume, é preciso comprová-la. Ele avalia que o caso de “espelhos emagrecedores”, por exemplo, pode ser entendido como uma estratégia que vai além das práticas saudáveis de venda.
— Se isso foi premeditado, a compra de um espelho, pode ser questionada por tentar ludibriar o entendimento da pessoa sobre a compra, pois ela não fez daquela compra com consciência — explicou o advogado. — Tudo tem um limite. A linha é tênue sobre o que é válido e o que não é.
Nos casos em que o consumidor se sentir iludido no ato da compra e entender que foi rompida sua confiança em relação ao lojista, Pellizzaro afirma que a situação deve ser resolvida de forma amigável, e que essa é a recomendação da CNDL. Ele destaca que pela lei, se não há defeito no produto comprado presencialmente na loja, o estabelecimento não é obrigado a trocá-lo, embora a maioria permita trocas para agradar o freguês.
Zwarg destaca, caso perceba que o lojista usou táticas antiéticas ou ilegais, deve comprovar isso, e abrir um processo contra a loja.
Algumas marcas utilizam o tamanho das roupas como uma forma de fazer um carinho no ego dos clientes, especialmente as mulheres, usando medidas maiores que o usual em manequins menores — uma mulher que veste 42 sair da loja feliz da vida, por exemplo, leva uma calça com etiqueta 38. Flávio Sabrá, gerente de Inovação, Estudos e Pesquisas do Senai Cetiqt, diz que pesquisas mostram que a circunferência dos brasileiros está ficando maior e as marcas vêm adaptando sua tabela de manequins para acompanhar esse processo. Mas ele reconhece que algumas marcas omitem essas mudanças para se adequarem à expectativa que seus clientes têm do próprio corpo, de modo a agradá-los:
— A marca muitas vezes pretende atender a um público específico. Psicologicamente, a pessoa não deseja usar um tamanho que não considera ser o seu. A marca muda o tamanho para atender a esse padrão de beleza. A indústria, às vezes, pode trabalhar com tabela de tamanhos para medidas diferentes, para atender à parte psicológica à venda.
O especialista destaca que seria mais ético se as lojas informassem mudanças nos tamanhos dos manequins. Ele lembrou que a fidelização das marcas pelos clientes passa por vários caminhos e que um deles pode ser essa sensação de bem-estar em vestir um manequim menor.
A advogada Janaína Alvarenga, da Associação de Proteção e Assistência aos Direitos da Cidadania (Apadic), diz as lojas nunca admitem o uso de modelagem maior:
— No máximo, a vendedora diz que o modelo tem um corte diferente, nunca que a marca adota uma numeração diferenciada para a sua modelagem e isso certamente é uma informação viciada.
Pellizzaro reconhece que há discrepância nos tamanhos dos manequins de roupas no país, mas afirma que não é um artifício para levar o cliente a crer que está mais magro. A diferença no tamanho de uma mesma numeração de roupa de uma loja para outra decorre da falta de padronização dos manequins no Brasil, o que é um problema para o setor e está em discussão.
— Deveria haver informações. Mudar o tamanho dos manequins sem avisar é não ser transparente. Nos dias de hoje, quanto mais fiel você for, mais o cliente vai voltar — diz Sabrá.
Fonte: O Globo - Online
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