São
Paulo - "Com o dinheiro, a gente tem mais liberdade". Mais do que estar
livre para consumir, a frase de uma beneficiária do Programa Bolsa
Família, moradora da região do Vale do Jequitinhonha (MG), revela outro
tipo de autonomia possibilitada pelo recebimento de uma renda fixa
mensal: a liberdade para fazer escolhas sobre a própria vida.
Pesquisa
da socióloga Walquíria Leão Rêgo, professora da Universidade de
Campinas (Unicamp), mostra que o programa levou uma lógica de
planejamento familiar para essas mulheres e desencadeou processos que
favoreceram o papel delas como cidadãs. De 2006 a 2012, foram
entrevistadas cerca de 150 mulheres que recebem recursos do programa de
transferência de renda.
"Dizer que com o dinheiro elas têm mais
liberdade, às vezes, foi o jeito que ela teve para assegurar: 'eu sou
mais livre', avaliou Walquíria. A pesquisa Vozes do Bolsa Família será
publicada em livro ainda neste semestre.
As entrevistas foram
feitas no interior e no litoral de Alagoas, no sertão do Piauí, na
região do Vale do Jequitinhonha e na periferia de São Luís, capital do
Maranhão. "Eu queria começar por algumas das regiões mais desassistidas
pelo Estado brasileiro", justificou a pesquisadora.
Atitudes
tomadas pelas mulheres, como encorajar-se para pedir o divórcio,
refletir sobre quantos filhos deseja ter, comprar um batom pela primeira
vez, abrir uma conta no mercadinho da cidade são algumas das situações
observadas no estudo.
O cartão e a senha do Bolsa Família ficam
sob o controle delas. "É diferente de dar cesta básica, porque você está
dizendo o que a pessoa tem que comer e quanto. Apesar de a renda ser
pequena, [com o dinheiro] você oferece um leque de opções, de escolhas.
Isso trouxe [para elas] uma liberdade pessoal maior, que nós chamamos de
efeito moral. Abrem-se brechas de liberdade na vida delas", explicou.
A
professora contou que a ideia inicial do trabalho era entender se as
beneficiárias consideravam a bolsa um direito ou um favor. "Mas, à
medida que fomos nos aprofundando nas entrevistas e nas pesquisas
teóricas, fomos vendo que o fato de elas receberem uma renda monetária
regular provocava um efeito muito especial, próprio da função social do
dinheiro", relatou. Segundo Walquíria, uma dessas funções é "decidir com
ele o que você quer fazer".
A possibilidade de pensar adiante
mudou a perspectiva de vida dessas mulheres. "Você está submetida
completamente à miséria, de tal modo que não tem nenhuma oportunidade de
determinar nada em sua vida. Você sai atrás de comida, se achar come,
se não achar não come", expôs a pesquisadora, considerando a condição
anterior das beneficiárias.
Entre os efeitos morais encontrados
pela autora do trabalho está a manifestação do desejo de fazer a
cirurgia de laqueadura. "[Isso] já é algo que está no horizonte delas.
Essa ideia de que querem se encher de filhos para aumentar a bolsa é
puro preconceito. Como qualquer mulher do mundo, elas têm medo da
gravidez, gostariam de ter menos filhos", disse. As condições de
trabalho dos maridos que, para conseguir algum serviço, passam meses
fora de casa também contribuem para a vontade de evitar a gravidez.
"Fica sob a responsabilidade delas administrar toda a vida das
crianças", destacou.
A pesquisadora também identificou casos em
que as mulheres se encorajam para pedir o divórcio de um marido
violento. "Esses assuntos são ainda cercados de tabus. Elas têm grande
dificuldade de falar sobre isso. Às vezes, quando consegui conversar com
a mesma mulher pela terceira vez, houve uma abertura maior para
falarmos sobre esse assunto", contou.
Apesar de obter relatos que
deixam claras situações emancipatórias vivenciadas pelas mulheres, a
professora ponderou que existem fatores culturais que interferem
fortemente nesse contexto, como a religião e a família. "Há um caso ou
outro em que isso aconteceu, mas é um assunto muito difícil de falar com
elas. Nessas regiões, a família tem um peso muito grande. Normalmente,
elas moram perto da sogra ou dos pais".
Embora algumas mulheres
tenham relatado compras de cosméticos, como um xampu ou um batom, com
recursos do benefício, a pesquisadora destacou que essa questão é
difícil de ser assumida. "O dinheiro do Bolsa Família é gasto, em
primeiro lugar, com comida para as crianças. Essa é uma moralidade muito
forte que elas têm. Tanto que, quando você indaga sobre cuidados com o
corpo, elas ficam muito assustadas com a pergunta".
De acordo com
Walquíria, para citar que comprou um item de beleza, a mulher, em
primeiro lugar, enumera os gastos com as crianças. "Ela acha que é como
se estivesse confessando um erro. Precisa explicar que comprou material
escolar, comida, mas sobrou um pouquinho e ela pôde parcelar em duas
vezes. Elas vão aprendendo a administrar a escassez do dinheiro, e
algumas me contaram: 'eu comprei xampu, eu estou comprando batom,
esmalte para unha'. Então, o cuidado consigo mesma, com o corpo, ainda
está em segundo, terceiro lugar".
Outra função do dinheiro nesses
casos foi o estabelecimento de relações de confiança. "É muito comum
elas contarem que agora podem ir ao mercadinho e dizer: 'olha, meu
dinheiro não chegou ainda, mas está aqui o meu cartão, eu vou levar e
quando sair [o dinheiro], venho aqui e pago'. O dinheiro trouxe uma
experiência nova de confiabilidade para essas mulheres", explicou.
Segundo
Walquíria, anteriormente elas sequer entrariam nessas lojas, porque o
dono sabia que não poderiam comprar nada. "Você há de convir que nesses
lugares as mulheres serem confiáveis é um ganho de autonomia e liberdade
muito grande. E de autoestima".
Fonte: Agência Brasil
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